quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Ele é o próprio e fascinante actor Júlio Cardoso

Fui ver ao teatro do Campo Alegre- Seiva Trupe "Eu sou a minha própria mulher", do americano  Doug Wright, um monólogo assombroso protagonizado pelo Júlio Cardoso. Na minha agenda de amante de teatro ainda me faltam ver até  ao final do ano umas trinta representações teatrais, mas esta  vai estar, sem dúvida,  entre as melhores. Durante quase duas horas, um actor só, entregue a si próprio, como se estivesse no fio da navalha, assume o papel de Charlote von Mahlsdorf, uma mulher aprisionada num corpo de homem. Foi nesta assumpção de um terceiro sexo, que Charlote sofre as perseguições dos vários regimes políticos pelos  quais passou a Alemanha, a partir do Nazismo até aos tempos  de agora, o que significa que ele, que nunca se indentificou como ele, atravessou todo o século XX. Em palco, como se isto não bastasse a um homem compor uma figura complexa de mulher, esse extraordinário Júlio Cardoso faz ainda o papel de mais trinta personagens, havendo sequências em que ele ao  mesmo tempo, faz três personagens, para cada uma assumindo uma postura de corpo e um registo de voz.
Há ainda um "tour de force" no texto, que nos engana e bem, nas expectitivas de quem vai ver o espectáculo. Fugindo aos clichés que temos sobre os maricas, imaginando-os em forrobodós promíscuos com o que vier à rede, Doug Wright opta, e muito bem, por um outro caminho na sua escrita dramatúrigica ao apresentar-nos uma velhinha ( que é um homem) que se sente mulher e em que a sua maior preocupação é manter e aumentar o seu  museu  de antiguidades que tem na cave de um prédio em Berlim oriental, sendo esta, repito, a sua grande paixão ao arrepio do que estávamos à espera, que era vê-lo com lantejoulas, lábios pintados e uns modos aberrantemente efeminados.
É teatro no seu estado puro, poético e trágico, comevedor e inquietante, doce e áspero. É uma proeza o que no Campo Alegre passa perante os nossos olhos ao longo de duas horas, onde é claro, não é alheia a mão do encenador João Mota.
E pensando em Júlio Cardoso, na sua sedução estética, deixo aqui um aforismo de Shakespeare, dito pela boca de um dos Montéquios, do "Romeu e Julieta":
"O que há, pois num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheirará igualmente bem".

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