domingo, 14 de novembro de 2010

Mariana Alcoforado - um espectáculo onírico no Teatro do Campo Alegre

O que pode fazer uma dramaturga, Maricla Biggia, e um encenador, Claúdio Hochman, a partir das cinco cartas íntimas e desperadas escritas por Mariana Alcoforado ao seu amante, oficial francês,em Paris? O que se vê o auditório do Campo Alegre, num palco aberto de parede a parede é um espectáculo onírico, criativo, inteligente e desafiador, povoado pelas alucinações, devaneios e fantasmas das protagonista, dando vida a Mariana Alcoforado, como uma espécie de alter-egos. É um espectáculo esteticamente muito bem conseguido, excelente, recreando o ambiente claustrofóbico de um convento, com as suas litanias em cantochão, os seus rituais, atravessado aqui e ali pela figura colorida e perturbadora do oficial que visita, em sonhos, a amante. Porque ali tudo é fantasia, onde um violoncelo competente e atento vai enfantizando os momentos mais significativos. Um deleite para quem gosta de TEATRO - a superior arte do fingimento e da cumplicidade.
Já cá fora, entro num café. Na televisão a voz esganiçada de Júlia Pinheiro pergunta a uma concorrente:"Ó Joana, a gente quer saber se há ou não paixão." O que vejo por momentos, é lixo colorido, patamar infra do passa-tempo português. Recordo-me o que ouvi minutos antes, pela boca de uma das actrizes,revivendo uma passagem das cartas de Mariana Alcoforado:
"Que há-de ser de mim? Ai, estou tão longe de tudo quanto imaginei."

A(s) Soror Mariana(s) no Teatro do Campo Alegre

sábado, 13 de novembro de 2010

As cartas da freira de Beja

Mariana Alcofoado,nascida em Beja no ano de 1640, foi uma freira portuguesa do Convento de Nossa Senhora da Conceição. Filha de uma família ilustre, aqui entrou com a idade de 11 anos, destinada a uma vida de oração, entregue a Cristo. Como acontecia a milhares de meninas não a movia um apelo divino. Era uma prática social, numa altura em que imperava o morgadio. Mariana nasceu exactamente no ano da restauração da nacionalidade -1 de Dezembro de 1640. A guerra contra Castela que se seguiu ao longo de décadas, trouxe a Portugal uma série de soldados, oficiais e mercenários. Entre estes vinha Nöel Bourton,aristocrata francês.Foi em Beja que se conheceram e logo a paixão avassaladora dominou Mariana.O escândalo depressa estalou. O francês, temendo pela vida,já que os Alcoforados eram uma família poderosa,regressou a França,embora deixasse a promessa a Mariana que regressaria a Portugal para a resgatar do convento. O que nunca aconteceu.
Esta sua ausência, sofridíssima, levou Mariana a escrever cinco cartas de amor e paixão. Redigidas possivelmente em 1667 e 1668, elas pertencem à literatura universal. Escritas em francês,há uma excelente tradução feita por Eugénio de Andrade. Mariana Alcoforado morreu em 1723, com a idade de oitenta e três anos. Da sua vida resta-nos a sua campa no convento e as suas cartas.
São elas que o Teatro do Campo Alegre e o Seiva trupe têm em cena até ao final do mês de Novembro. A não perder!!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Emilia Silvestre em "Dueto Para Um" de Tom Kempinski

Emilia Silvestre & Jorge Pinto em "Dueto Para Um"

Emília Silvestre "é" Jaqueline du Pré

Está em cena no Teatro Carlos Alberto, até ao dia 24 de Outubro, a peça de Tom Kempinsky, "Dueto para Um" inspirada naquela que foi uma das mais estraordinárias e precoces viloncelistas dos tempos modernos: Jaqueline du Pré e que uma esclerose múltipla, galopante retirou da cena musical. Quem a quiser ver, é sintonizar o canal Mezzo - 150 do Meo, ou 151 da Zon, dedicado exclusivamente à música (mal) dita clássica ou séria. Aqui passam algumas gravações da violoncelista.
Falemos do espectáculo. O espaço cénico do Carlos Alberto, foi radicalmente encurtado, tornado claustrofóbico, as duas paredes laterais pintadas de branco. Ao fundo, numa aberura para a vida, uma mesma paisagem que ao longo da peça vai sofrendo as transfrmações impostas pelo correr das estações -talvez numa resposta cénica à questão básica e estruturante que o psiquiatra coloca à protagonista: "Senhora Abrahms, sabe qual é o sentido da vida?"
Na peça, um texto de escrita difícil em que o autor não cai na comiseração nem na tristeza faduncha, Stephanie Abrahms (Emília Silvestre) é consultada pelo psiquiatra Dr. Alfred Feldman (Jorge Pinto) num desejo de levantar o moral "a quem se encontra em baixo". Não há aqui tristeza faduncha porque Staphanie recusa a auscultação de qualquer inquietação anímica, que a exporiam o seu lado frágil.
São duas horas de puro e grande teatro. Cai-nos no colo de espectadores uma Emília Silvestre (como nunca a tinha visto): trágica,. devoradora, provocadora, dessimulada, excessiva, grosseira (sem medo de recorrer, já na sexta sessão terapêutica, a um jargão digno de um carroceirto). Muitíssimo bem dirigida pelo encenador Carlos Pimenta, a actriz dedobra-se em registos de voz e inflexões absolutamente notáveis, tanto mais que todo o seu desempenho está confinado a uma cadeira de rodas. Aquela que foi adorada por milhões de amantes da música e que da música vivia como um hausto animíco acaba, termina no final, o ser humano que é, despojado de todo o resto.
E por aqui me fico. Foram duas horas de prazer de alma e agradecer a toda uma equipe que levantou o espectáculo. São coisas como esta que me reconciliam com o ser humano. E "A Casa dos Segredos" que passa na TVI, uma bolha vazia, móbida e estupidificante? Sãoquase um milhão de espectadores a ver a coisa. Bom, mas isso são outras novelas, outras teatrices.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Fala da criada do senhor Jorge Silva Melo

Adoro monólogos, o artista colocado em cima da navalha, só, sem as muletas das réplicas e das deixas. É como Marcel Marceau, na solidão de um palco vazio, vazio, vazio. Só - e aqui neste espectáculo, falo de uma contida mas muito expressiva Elsa Galvão, sempres sentadinha e modesta -o artista monologador consubstancia-se em si mesmo como o único ponto de confluência e ao mesmo tempo o único ponto de fuga.
O texto de "A Fala da Criada dos Noailles" foi uma inesprada surpresa, não tanto pela qualidade do texto, longe de mim! -mas pela ironia muito britânica de que está impregnada. Rapidamente, numa breve sinopse, direi que a criada Severine, recorda os anos loucos antes da guerra que viveu  em casa do Noalles, mecenas franceses e endinheirados, que recebiam em jantares, estadias e orgias gente ligada à arte. Num discurso que avança,  recua e se repete,tal como as 33 assobiadelas ou toques de campainha  que monolgante refere, isto é, "O Bolero" de Ravel, fazem-se alusões a convidados immporantíssimos, referenciando-os vagamente não pelos seus nomes soantes da cultura mas apenas por alusões: Maurice Ravel é apenas monsieur,assim como Cocteau: monsieur Jean. Até Picasso, cujo nome nunca se explicita é referido perifrariamente e reiteradamente como "o espanhol pequenito e entroncado". E ainda aquele leit-motiv, inquietante, cínico e provocador:
              "A arte não serve para nada. Só para gastar dinheiro"
No final, fechando-se o tempo, a telão de fundo abre-se, num quadro vivo para os fantasmas de Severine virem até nós.
O teatro, este bom teatro a que vamos assitindo nas salas do Porto não serve para nada? Pois não. Nem tem que servir. Para isso temos as novelas narcóticas e os filmes mediocres da LusoMundo e da Castello Lopes. Bom, mas isso são outras cenas, outras fitas.

sábado, 12 de junho de 2010

A BELEZA DO PECADO pelo Teatro Art'Imagem

A partir de três textos de autores diferentes,com destaque para Almeida Negreiros, Fernando Moreira constroi um espectáculo dorido, pessimista, carregado de símbolos, signos, sinais em que o elemento matricial é a água. O espaço cénico constroi-se e desenvolve-se partir de um lago - ele é o elemento catalizador. Ao longo de 70 minutos percebemos como a água purifica, lava,abençoa, rega, transforma. O texto na boca dos actores Valdemar Santos e Ângela Marques assenta neste pressuposto: num mundo caótico, antropofágico e vazio de valores pouco podemos fazer. Pior que o deficit económico é o deficit espiritual e emocional. Isto  não passaria de um discurso negativista (e simplificado) à Shopenhauer se Fernando Moreira não tem criado uma fabulosa personagem: o menino adulto, interpretado pelo Pedro Carvalho, um matulão (fisicamente, claro). É por ele que passam os melhores registos cénicos. É com ele que nos comovemos. É com ele que nos solidarizamos. É dele que nos impregnamos num certo desejo de regressar à ignorância e bondade infantil. Plasticamente muito belo o espectáculo não deixa de incomodar: é o bello horribilis.
O esforço físico e espírito de sacrifício exigido aos actores é tremendo. Atirado para um patamar superior de qualidade estética, são realizações deste cariz que me fazem gostar cada vez desta grande e superior ARTE DO FINGIMENTO. Como é pobre o cinema, ao pretender imitar a realidade.
Uma nota final para a selecção musical feita por Carlos Adolfo. Ao longo da peça vamos ouvindo uma música primordial e telúrica, como se fosse a Terra a respirar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010



O Presidente da República homenageou o Teatro através de condecorações a alguns actores e actrizes.Nesta fotografia quero destacar - sem desprimor para os outros - a Beatriz Batarda e o Júlio Cardoso.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Três actrizes, três mulheres de Pedro I, o Cruel

Na fotografia temos as três actrizes que, no texto de José Carretas, "Pedro e Inês", representam outras tantas mulheres que estiveram envolvidas, e de que maneira, com D. Pedro, o Cruel. A primeira da esquerda é Ana Margarida Carvalho, no papel da plebeia Teresa Lourenço, que vai dar à luz, um bastardo: nem mais nem menos do que aquele que haveria de ser um grande rei: D. João I. Ao centro está Isabel Francisco como Inês de Castro,a belíssima galega. A seguir é Linda Rodrigues num papel que, na imaginação de Jose Carretas, representa simbolicamente todas as mulheres que esse rei desaparafusado violou.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Fotos do espectáculo "Papalagui"

Estas são duas fotos de Paulinho Oliveira no seu excelente desempenho em "Papalagui"

O PAPALAGUI, pelo Pé de Vento.

Lembro-me que o livro "Papalagui" circulou em Portugal, profusamente, poucos anos depois do 25 de Abril.Trata-se, como de todos é sabido, do discurso de Tuiavii, chefe de uma tribo  das ilhas Somoa, depois de ter visitado a Europa, na primeira década do século XX. Palavras desconcertantes na sua filosofia primária mas primordial, que não deixam de inquietar e interrogar a quem as ouve. Não era isto a linha de força de Sócrates ( o senhor engenheiro não é para aqui chamado!), o interrogar, respondendo a um impulso interior?
Mas aqui, enquanto amante de teatro e no registo das minhas emoções, o que me interessa é o que se passou no palco e a maneira como João Luiz pegou num texto (in)cenável, sem didascálias, nem nada. Fê-lo de uma maneira criativa e sabedora, recorrendo uma pequeno número de praticáveis, que manuesados pelo actor, mais não faziam do que sublinhar e enriquecer o monólogo. Particularemente bonita, embora propositadamente claustrofóbica, toda a cena dentro do cubo:
"É perigosa esta maneira de indagar e contar as luas.Sabemos que ao fim de muitas luas estamos próximo da morte e acabamos mesmo por morrer", diz o chefe Tuiavii.
Há no desempenho de Paulinho Oliveira uma presença física muito forte, uma excelente dicção - pouco actores possuem esta imprescindível ferramenta - e momentos de pausa que nos permitem reflectir. O seu registo vocal, cheirando aos calores  africanos, muito ganharia se carregasse no seu sotaque "angolanês", com o que lhe daria um tom exótico. O desenho de luz, um aspecto de que muitos espectadores não dão conta, é muito bem conseguido.
É de louvar trabalho do Pé de Vento, e do João Luiz, em particular, pela luta insana que trava para chamar ao teatro a canalha pequena, e não só, formatada na "morangada", na avalanche etílica das novelas e na rasquice dos filmes da Luso Mundo e Castello Lopes. É trabalho militante em prol da cultura a que muitos dão pouca importância.
Bom, mas isso, são outras cenas, outros teatros. Ou outras novelas.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Ainda acerca de "Pedro e Inês", de José Carretas

Como eu gosto de chamar às coisas e às gentes pelos nomes que lhes deram na pia baptismal -as coisas também têm os seus baptismos -aqui vão os nomes dos actores que aparecem, abaixo, nas fotografias de ensaio. Pedro,o destrambelhado rei, é André Brito - com um desempenho excelente, sabendo emprestar à figura os antagonismos que ela obriga. Inês a, bela galega,  apaixonadíssima amante de Pedro, é Isabel Francisco, num papel dilacerado e comovente. Pedro Fiuza é o rei, entre outras personagens que o registo da peça e as opções do encenador implicam. Gostei dele, particularmente. Há ali saber e presença, uma voz madura no meio de tantos jovens actores que José Carretas entendeu, e bem, trazer para o elenco.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Aquele tal Pedro, o rei desaparafusado, e sua Inês

Fui ver mais  uma vez um espectáculo do CACE Cultural do Porto, saido da cabeça do José Carretas, um dos mais criativos encenadores que temos por aqui, sendo ele próprio o autor do texto. Aquele rei desaparafusado, em quem se concentraram algumas das taras paridas na consanguinidade ancestral -cruel, paranoico, obssessivo, bipolar ao máximo, predador sexual - continua a  ser fonte de inspiração e atracção. Sabia que, ao contrário de muitos outros criadores, o José Carretas não pretende no que escreve, introduzir visões particulares de acontecimentos passados. É aquilo que é, e pronto. Mas sob este manto de aparente objectividade, José Carretas não dá ponto sem nó. E o início do espectáculo, com aquele coro "grego" dissertando sobre a maldade de que são feitas as nossas entranhas dá o mote a todo o resto: o ser humano não é flor que se cheire. E logo de seguida arrasa-nos com um coito descarnado, com dois corpos que parecem degladiar-se  numa luta sangrenta. Adiante, que isto dará para uma próxima crónica.
Como já esperava é um espectaculo, apesar da rudeza que por ele perpassa, de uma grande beleza estética. Há soluções cénicas muito bem conseguidas, marcações irrepreensíveis, mudanças de cenas de um rigor profissional. Comovente o monólogo de Maria Rossada (isto é, violada), pela boca aqui da vianense Linda Rodrigues. Tremenda toda a cena que corporiza o assassinato de Inês. Muito bom o desempenho do "Pedro" cujo nome desconheço - o programa é omisso, quanto a mim mal, em indicar quem é quem.
A cena final, recordando-nos como Pedro e Inês se acham sepultados em Alcobaça, é extramente bela. Sem subterfúgios recomendo vivamente este espéctaculo.  Larguem a modorra embrutecedora do sofá, libertando-se da alienação televisiva e do tsunami de novelas simplórias. É daqueles espectáculos que, mantendo uma superior qualidade, é capaz de trazer novos públicos para essa coisa extraordinária que é o Teatro, a nobre Arte do Fingimento. Bom, mas isso são outras cenas, outros teatros. Ou outras novelas.

domingo, 9 de maio de 2010

terça-feira, 2 de março de 2010

Um vale de emoções simples na África do Sul

Numa louvável coaboração deTeatro S.João com outras grupos cénicos, trazidos até ao Porto pela mão do seu director, o encenador Nuno Carinhas, desta vez fui ver ao Carlos Alberto (sala que eu particularmente prezo, vá lá saber-se porquê) a "Canção do Vale" do sul-africano Athol Fugard. Dele e da sua dramaturgia não sabia rigorosamente nada. Mas a nacionalidade do seu autor augurava-me qualquer coisa de diferente, com os seus laivos de exotismo.
E não me desiludi. Antes pelo contrário. Aquilo cheirava a África, a post-apartheid. Trama simplicíssima: um velho negro,(José Peixoto no papel de Abraam Jonkers) agricultor, amante da terra, vive com a sua neta, ( Carla Gusmão no papel de Verónica) numa relação fraternal e pacífica. Mas o conflito estala quando Abraam Jonkers se apercebe que a neta tem outros sonhos quanto ao seu  futuro. Ela pretende abandonar o vale onde vivem, e ir viver para Joanesburgo onde pretende tornar-se cantora.
História simples, tecida numa teia explícita, mas onde circulam afectos, anseios, sonhos,medos. É uma história que tem uma localização precisa, África do Sul, mas que funda as suas raizes num país que, post-apartheid, procura novos caminhos, caminhos que lhe são próprios. E se o velho agricultor negro representa o passado conservador, Verónica é futuro. E nas canções que ela compõe está esse futuro. Não são canções tontas e desenxabidas que vamos ouvindo por aí, mas canções, como se  diziam antigamente, com mensagem. E Verónica canta para nós, e faz do público sentado na plateia o seu próprio público, e partilha connosco,ao cantar, o seu próprio sonho.
Quero dizer que já conhecia a Carla Galvão de outros  trabalhos,nomedamente com o Miguel Seabra. Sempre vi nela uma excelente actriz, carregada de talento.Mas desta vez o que me pasmou foi a sua capacidade para cantar. A rapariga canta mesmo muito bem, a sua voz por vezes atingindo as sonoridades com só as cordas vocais de uma mulher negra são capazes.
Verónica partirá para a grande cidade. E velho Abraam Jonkers, sem ira ou despeito pela partida da neta, esperará a chegada das primeiras chuvas para iniciar a sementeira. Este é um passado que não se pode ignorar. É que sem ele, não poderá haver futuro.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Trinta e cinco anos depois revi a MÃE, de Brecht


Foi com alguma expectativa da minha parte, e porque não dizê-lo, com uma certa emoção que fui ao S. João ver a  peça mais  emblemática de Brecht: "A Mãe". Tinha-a visto a seguir ao 25 de Abril, na Comuna, com música e letra de José Mário Branco, e protagonizada por uma extraordinária actriz, quer entretanto e desgraçadamente "desapareceu de cena": Manuela de Freitas. Tinha desse espectáculo uma memória comovente, esteticamente bela. Desse espectáculo comprei vários "Lp-vinis" e sei que os ofereci a uns quantos amigos.
Passados que foram trinta e cinco anos, as coisas mudaram: o mundo, a sociedade, as aspirações operárias, as manhas anestisiantes do capitalismo, e eu, claro. Num texto profundamente engajado, acreditando na revolução do socialismo, Brecht tece uma teia em que uma mãe, analfabeta e inculta, por amor ao seu filho acaba por participar na revolução socialista. O texto de Brecht detém-se, avisadamente, na revolução russa de 1917.
Não deixando de ser  a obra que é, esta Mãe, de Brecht, apesar de ter que ser lida, interpretada e vista com outros olhos está demasiada colada, e encurtada na sua amplitude, pelo seu engajamento político, por vezes panfletário. Aquilo para que a peça aponta, um mundo socialista, livre de opressores numas manhãs que cantam, já foi posto em prática. Os meios de produção e o produto do trabalho dos operários, já (Já?)esteve em mãos desses mesmos operários. E tudo, eu diria com a minha alma dorida, falhou. O mundo soviético veio por aí abaixo, desmoronando-se fragorosamente. E por isso me senti tão desconfortável por ver passar à minha frente, naquele palco, a corporização de uma palavras de ordem em que eu já acreditei.
Com utopia e pés na terra, as manhas e os tentáculos alienantes do capitalisno e do neo-capitalismo é que têm que ser denunciados. Mas não assim, por muito que queiramos ler Brecht com outros olhos, tal como propõe Jaquim Benite, o (grande) encenador. Mas como?
A ganância do capitalismo americano conduziu-nos a este estado económico de cataclismo. Mas ele sobreviveu, e nos EUA, a banca que recebeu inimagináveis maquias para repor a sua liquidez, à conta dos contribuintes, continua  a dar chorudos prémios pevuniários aos seus directores, os mesmos que fizeram sossobrar a economia mundial, tornando os pobres mais pobres..
Foi, apesar de tudo, um espectáculo que acabei por gostar de ver.
No entanto, e aqui recordo alguns dos grandes actores portugueses que nunca fizeram novelas, como diz o João Mota, penso que de uma forma extremista, "nunca se venderam". É que dois dois dos operários do elenco, eram figuras muito conhecidas da uma série medíocre e pateta da SIC que se intitulava "Os malucos do Riso". Estarei a cometer uma enorme e grave injustiça e que me perdoem por isso. Mas eu olhava para eles, e só via os dois polícias, naquela série tonta, a dizerem bojardas para provocarem o riso.
Terá o João Mota razão? Não pode um actor deixar-se contaminar por sub-produtos da TV? Claro. Vejo às vezes o António Capelo a fazer uma boa série na TV sobre advogados e quando o vi no "Othelo," nem um poucochinho foi a sua imagem beliscada.
E quanto a Brecht não percam, quando disso tiverem oportunidade, de ver aquela que é para mim a sua melhor peça: "O Círculo de Giz Caucasiano".
E a Brecht o que fazemos? Bom, mas isso são outras cenas e outros teatros.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O humor triste de Flávia Gusmão

Se as imagens da hecatombe   que varreu o Haiti, sem evitarmos o nosso lado voyeurista, nos deixou espantados e doridos, não pude deixar de me inquietar, quando dias depois, começaram aparecer estrangeiros, não para ajudar, mas para levarem crianças orfãs consigo, suspeitando-se, fundadamente, que pretendiam com elas fazer tráfego. Não há dúvida que o ser humano não é flor que se cheire, e tenhamos nós a nossa mais ou menos desenvolvida costela de solidariedade  a verdade é que carregamos a semente do mal.
Tudo isto vem a propósito da peça que vi no Carlos Alberto, cinicamente intitulada "AMOR", de  um brasileiro de nome André Sant' Anna ( o apelido é assim mesmo grafado,não é erro meu), protagonizada por uma jovem de cabelo louro, e olhos verdes e luminosos, de seu nome Flávia Gusmão. Recebe-nos sentada na ribalta, sorrindo para quem chega, como anfitriã cordial. Se ela nos oferecesse uma bebida e desatasse a falr de trivialidades, não me admiraria.
Não passa de uma armadilha montada pelo encenador. Mantendo no desenho de luz, uma luminosidade que abarca a assistência, não a deixando refugiar-se na escuridão, como que querendo fazer dela participante, Flávia Gusmão  lança-se num texto desapiedado, cínico e cruel, falando do mundo e de um mundo que anda à volta "das bucetas". E se aquilo começa por parecer ser uma espécie de "stand up comedy", depressa assume nuances de "stand up tragedy".
A raiva que perpassa pelo texto, onde o sentimento dominante que se denuncia é o da hipocrisia, não deixa escapar nada, nem ninguém. Nem o próprio autor.
Durante quase uma hora, uma excelente Flávia Gusmão, demiurga e feiticeira num palco vazio, debita o texto ora em português da Ibéria, ora em português tropical, sabendo onde acentuar as frases, fazer as pausas, acelerar o ritmo,ou pausar. E o texto, corrosivo e inquietante, desconcerta-nos, brinca com o politicamente, socialmente, psicologicamente correcto. "Amor" é a nossa cegueira.
O que temo,é que daqui a muitos anos (estou a lembrar-me do nosso velho Shakespeare) a cegueira que se denuncia em "AMOR" manterá uma tremenda actualidade. Bom, mas isso são outras cenas, outros cenários.
 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Ele é o próprio e fascinante actor Júlio Cardoso

Fui ver ao teatro do Campo Alegre- Seiva Trupe "Eu sou a minha própria mulher", do americano  Doug Wright, um monólogo assombroso protagonizado pelo Júlio Cardoso. Na minha agenda de amante de teatro ainda me faltam ver até  ao final do ano umas trinta representações teatrais, mas esta  vai estar, sem dúvida,  entre as melhores. Durante quase duas horas, um actor só, entregue a si próprio, como se estivesse no fio da navalha, assume o papel de Charlote von Mahlsdorf, uma mulher aprisionada num corpo de homem. Foi nesta assumpção de um terceiro sexo, que Charlote sofre as perseguições dos vários regimes políticos pelos  quais passou a Alemanha, a partir do Nazismo até aos tempos  de agora, o que significa que ele, que nunca se indentificou como ele, atravessou todo o século XX. Em palco, como se isto não bastasse a um homem compor uma figura complexa de mulher, esse extraordinário Júlio Cardoso faz ainda o papel de mais trinta personagens, havendo sequências em que ele ao  mesmo tempo, faz três personagens, para cada uma assumindo uma postura de corpo e um registo de voz.
Há ainda um "tour de force" no texto, que nos engana e bem, nas expectitivas de quem vai ver o espectáculo. Fugindo aos clichés que temos sobre os maricas, imaginando-os em forrobodós promíscuos com o que vier à rede, Doug Wright opta, e muito bem, por um outro caminho na sua escrita dramatúrigica ao apresentar-nos uma velhinha ( que é um homem) que se sente mulher e em que a sua maior preocupação é manter e aumentar o seu  museu  de antiguidades que tem na cave de um prédio em Berlim oriental, sendo esta, repito, a sua grande paixão ao arrepio do que estávamos à espera, que era vê-lo com lantejoulas, lábios pintados e uns modos aberrantemente efeminados.
É teatro no seu estado puro, poético e trágico, comevedor e inquietante, doce e áspero. É uma proeza o que no Campo Alegre passa perante os nossos olhos ao longo de duas horas, onde é claro, não é alheia a mão do encenador João Mota.
E pensando em Júlio Cardoso, na sua sedução estética, deixo aqui um aforismo de Shakespeare, dito pela boca de um dos Montéquios, do "Romeu e Julieta":
"O que há, pois num nome? Aquilo a que chamamos rosa, mesmo com outro nome, cheirará igualmente bem".

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Júlio Cardoso é a sua própria mulher

Também quero dar aqui a minha modesta contribuição para a homenagem a essa extraordinária personagem da cultura e do teatro que se chama Júlio Cardoso. Infelizmente neste país de alfabetizados pelas novelas e pelos noticiários das desgraças, em que um espirro do chutador Cristiano Ronaldo pode fazer parar o país, o nome de Júlio Cardoso a 90% da população portuguesa nada diz. Mas devia dizer, e muito.
Não vou estar agora aqui a papaguear  tudo o que este querido homem de teatro fez e não fez (ele disto leva 50 anos!),mas não posso deixar de recordar a peça de Copi "Uma visita inoportuna", encenada pelo Castro Guedes, um espectáculo de arrepiar pelo que tinha de trágico,cómico e desinquietante.
Apenas quero dizer que o JÚLIO CARDOSO vai estar em cena,sozinho, numa espécie de fio da navalha,a partir de 8 de Janeiro, no Teatro do Campo Alegre com um monólogo que se chama "Eu sou a minha própria mulher", de Doug Wright, um título estranho e maravilhosamente conseguido, porquanto trata da tragédia de um travesti alemão, que mesmo em pleno nazismo( perseguidor de judeus, ciganos,deficientes mentais  e homossexuais)nunca abdicou da sua orientação sexual. A peça ganhou uma mão cheia de prémios, o Pulitzer, por exemplo,e ainda o Tony Award,que é uma espécie de Oscar, isto para quem acredita na qualidades dos filmes premiados com Oscares...
Quero ainda dizer, que  o encenador é outro nome de suspender a respiração, que é o João Mota, rapaz culpado  do meu amor ao teatro quando nos anos setenta vi esse fabuloso "Para Onde Is?" da sua Comuna, numa garagem atrás da fábrica da cerveja,em Lisboa.
Ir em Janeiro ao Teatro do Campo Alegre é, em nome das luzes da cultura, uma prova de lucidez, de bom senso e bom gosto, Que grande é o mundo para lá da televisão!
Bom, mas isto são outras estórias, outras cenas.
 

domingo, 3 de janeiro de 2010