quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Fui ver o Otelo ao Teatro do Bolhão

Há génios que foram levedados nas entranhas de Deus: Beethoven, Fernando Pessoa e neste caso, Skakespeare. Mais uma vez na minha vida de amador (o que ama) de teatro fui até ao desconfortável (mas quem ama, ama) auditório da praça Coronel Pacheco, numa noite em que natureza entendeu mostrar os dentes, fazendo cair chuva, que esta em dado momento da pera, podia ser ouvida. Temi pelo meu carro, estacionado sob a s árvores da praça....
Otelo, o mouro de Veneza, tem, como muitas das tragédias do dramaturgo inglês, esta notabilissima faculdade de nos levar até às profundas mais negras da alma humana, e questionar a nossa situação de seres racionais. Para que queremos a nossa inteligência, se hoje como no século de Skakespeare, continua a larvar o ciúme, a inveja, o suicídio, o racismo (Otelo, é um general mouro ao serviço do doge de Veneza), o instinto homicida, a intriga maléfica,o ódio? E o amor, sim, mas um amor tão embrulhado em sentimentos negros que será difícil falar daqule sentimento como  amor - talvez a excepção seja o amor de Desdémona por Otelo
Este Otelo pelo Teatro do Bolhão tinha para mim três motivos acrescidos de interesse, para além de saber que ia ver um espectáculo de muita qualidade e rigor: um era ver a encenação do japonês Kuniati Ida, homem do teatro de reputadíssimo valor, o segundo era ver o desempenho do João Paulo Costa, que conheço noutros registos, que não este, por quanto ao fazer o papel de Iago na peça, é este Iago que gera a intriga, é ele que acaba por despoletar toda a tragédia em que algumas das personagerns se atolam, perdendo a vida. O terceiro motivo de interesse era ver a Rita Lello no papel de Desdémona, e isto por uma razão muito simples, que era de a "conhecer" vagamente das novelas da TV - género de arte que considero menor, mais próximo do entretenimento oco. Será preconceituoso da minha parte? Talvez.
A verdade é que ao longo de duas horas e meia, mergulhei num puro prazer intelectual, um prazer também feito de inquietação e angústia, medo e revolta, repulsa  e desprezo, vivendo as personagens,  que é para isto que o teatro - ARTE surprema do fingimento - também serve. E foi também um prazer poder ver como o António Capelo que conheci nos seus tempos de jovem em Viana do Castelo, continua a ser um actor de alta estaleca, sem que lhe tivesse descortinado qualquer contaminação das telenovelices em que anda envolvido, com muita pena minha. Há uma marcação rigorosa em cena, um interacção dramática que também se faz com pausas arrepiantes, e ainda um guarda-roupa estupendo, que o desenho de luz (parabéns!) sabe realçar.
E puxando à brasa à minha sardinha de homem do Norte, senti um desmesurado orgulho por ver que no Porto, longe das luzes da ribalta da capital, que tudo sorve, é possível fazer um espectáculo com a qualidade do que vi. Infelizmente na noite demoníaca em que fui, não estava muita gente. No entanto como eu gostaria, num plano pedagógico que diferencia (acho eu)o Teatro do Bolhão das outras companhias, que se fizessem mesas redondas, tertúlias para se saber o grau de adesão a uma peça  e a um espectáculo tão denso e exigente, quer para os profissionais que o fizeram, quer para o públco que ali ocorreu.
Bom, mas isso são outras cenas, outros teatros.
 

domingo, 6 de dezembro de 2009

Fui ver debaixo da ponte do Freixo A HISTÓRIA DE UMA ESTÓRIA

O que eu sabia, muito, muito vagamente  da poeta Stevie Smith, é que ela se cruzara com um outro poeta, o Ted Hughes, casado que foi com a grandíssima poeta Sylvia Plath, que se suicidou aos 31 anos, e como diria Santa Teresa de Ávila, "morro por não morrer". Isto está tudo contado num belo filme intitulado "Sylvia", interpretado pela Gwyneth Paltrow, que enfim, um filme deste calibre  merecia uma actiz carismática, capaz de uma profunda carga dramática, que não é bem o caso da seráfica Gwyneth. De qualquer modo, o filme "Sylvia" deve fazer parte da filmoteca de qualquer cinéfilo.
Daí ter ido ao CACE também com este item de curiosidade acrescido: o que levara José Geraldo a escrever um texto dramático inspirado num conto de uma escritora,essencialmente poeta?
Num espaço plasmável como uma plasticina, camaleónico, vi no CACE o que nunca tinha visto: uma espécie de palco à italiana, querendo o encenador com esta solução, marcar um certo distanciamento em relação aos espectadores. Distaciamento físico e distanciamento emocional.
E de outra maneira, na prática, nem podia ser, considerando que todo o espectáculo se desenrola tendo uma polifacetada máquina de cena como geradora e centralizadora de toda a acção.
É esta máquina de cena que acaba por dominar toda a acção cénica, numa arquitectura de soluções muito criativas, trazendo para o teatro aquilo que para mim, e não me canso de dizer, está no seu ADN: ele é a grande e superior arte do fingimento.
E é aquela máquina de cena que mais do que permitir contar a Hstória de Uma Estória, faz com que em cena haja teatro dentro do teatro,pois a própria máquina, labiríntica, tentacular e poli-semântica, é teatro.
E o que vi naqueles 55 minutos de espectáculo foi TODO o teatro. Desde um texto relativamente acessível, passado por uma espécie de café-teatro, um quase teatro de marionetes, até a um coro grego, despido de tragédia negra, travestido de um certeiro espírito de bobo.
O que se passou ali foi uma hora de entretenimento, não um entretenimento infantilizante, mas que nos atrai, enriquece e inquieta. Porque o texto na sua aparente singeleza coloca o dedo nesta questão: em quem devemos acreditar? Ou não devemos acreditar em ninguém?
O espectáculo que me agradou cabalmente situa-se naquele patamar óptimo  que eu defendo: mantendo inexoravelmente a qualidade, ele consegue chamar ao teatro e fazer gostar de teatro aqueles que têm as suas cabeças  formatadas pelas telenovelas e pelo cinema Luso-Mundo e Castello-Lopes.
O papel assumido pelo "coro grego"(!) ao ter uma intervenção transversal em toda a peça, e pela maneira como o encenador o recriou, acabou por dar-lhe um protagonismo, essencial para tornar o espéctaculo no seu todo num agradabilíssimo trabalho, assumindo um papel que vai muito para além daquilo que fazia Brecht.
Boa presença em palco das actrizes, com uma dicção perfeita. Linda Rodrigues é Helena, a escritora,num desempenho contido, diria até refreado, e que em meu entender acaba por ser "prejudicado" pelo excelente histrionismo da Ana Margarida Carvalho. De facto, o burlesco bem sucedio por esta actriz, acaba por abafar o próprio texto que ela debita, de tal modo que a partir de certo momento o público já se ria,só de a ver entrar.
Não esquecendo que a pessoa que escreve este blog não passa de uma amador de teatro, entendo que ao monólogo final de Helena, onde ela se interroga e interroga o mundo à sua volta - monólogo fundamental para se entender toda a peça - deveria ter sido dado um outro relevo cénico e uma outra marcação. Tive por vezes a sensação, embora reconheça que possa estar errado, que a actriz se encontrava ali um pouco perdida.
Entendo ainda que os dois papéis atribudos a Rui Queirós de Matos eram desnecessários. A intriga seria muito mais interessante se, ao manter o triângulo tradicional do conflito, Helena-Bela-(o sempre ausente) Rolando, os espaços de ligação e de complemento da acção estivessem a cargo dos excelentes "Les Saint Armand".
Houve momentos na peça  em que me recordei dos celebérrimos "Jograis de S.Paulo" uns debitadores colectivos de poesia dos anos setenta.
Entendo por fim que "A Historia de Uma Estória" estando ele naquele patamar óptimo deveria ser divulgado pelas escolas e aí, sim,conquistar público.
 

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Mário Barradas vai andar pelo firmamento

Hoje, 19 de Novembro,  Mário Barradas partiu para a Via Láctea, e logo à noite o firmamento terá mais uma luzinha, que muito aturdirá os cientistas agarrados aos telescópios. Terá a luz que têm as outras, só que esta é uma luz insatisfeita, também violenta, quantas vezes desagradada com a terra geográfica que a pariu. E essa luz falará de Brecht e de Marivaux, com  o sotaque das  ilhas dos Açores. Só o teatro, a nobre arte do fingimento, podia encenar este milagre: uma estrela a falar Máriobarradês!
Cheguei a Lisboa, nos anos sessenta, vindo de uma terra de província onde o teatro era apenas aquele que nos era trazido pela Companhia de Teatro  Rafael de Oliveira. E pensava para mim, já apixonado pelos fingimentos que via naquele palco, que tinha que haver outro teatro. E havia. Esse outro teatro encontrei-o numa triologia épica que me moldou os gostos e os apetites culturais, e fez de mim, volvidos 45 anos, um apaixonado do teatro. Um foi "À espera  de Godot". A outra foi "Para onde is?", pela malta jovem e irreverente da Comuna, representada numa garagem nas traseiras da Fábrica da Cerveja. Tenho esse bilhete guardado numa gaveta e não consigo encontrá-lo. Finalmente a outra foi a "Comédia Mosqueta", numa encenação do Mário Barradas (e não sei se com ele mesmo.)
Mário Barradas vai estar no fimamento. E a estrela que se mostrar insatisfeita e descontente com o empobrecimento cultural e a pronvicianice dos serviços informativos que só discute futebol como se ele fosse o princípio e o fim de todas as coisas, pois essa é a estrela. E quais reis magos, basta segui-la
Ver-nos-emos por aí, Mário.
Um abraço

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Fui ver as Taras Mínimas ao Sá de Miranda

O programa que é distribuído insere, entre outra informação, o seguinte, da lavra do autor Gustavo Pernas: "Debaixo da face estética da moda escondem-se os corpos vencidos e as mãos de milhares de mulheres que tecem a teia de aranha duma nova escravidão." Óptimo! Não podia estar mais de acordo e achei interessante que o autor tivesse pegado nesta questão associando-a, pela fotografia da jovem escanzelada e reduzida a pele e osso que aparece no programa, à ditadura da magreza.
A proposta é simples, e a partir daqui, aborde o autor da maneira que abordar, não terá que fazer mais do que ir enriquecendo esta linha de narrativa e de conflito, quase sempre triangular, ao longo do desenrolar da intriga - quando ela existe, claro. Tanto quanto sei, isto faz parte dos livros e todos aqueles que eram uns perfeitaços nestas coisas da dramaturgia foi assim que procederam: Ibsen, Tchekov, Brecht, etc, etc, até ao nosso Vieira Mendes. No entanto, Gustavo Pernas, talvez incapaz de refrear e gerir dramaticamente a sua criatividade, atira para o mesmo saco uma série de questões que deveriam ser tratadas em separado, e que só por si, mereciam mais umas quantas peças. A primeira é a nova forma de exploração a que recorrem as multinacionais. A outra seria os problemas que afectam uma determinada família, donos de uma multinacional, com uma filha modelo-caprichosa-insaciável, e tanto quanto percebi (se calhar mal) assassina do marido. Mais outra seria a forma como é feita o recrutamento do operariado, depois as suas condições degradantes de trabalho, ainda uma operária que tem uma filha anorética, e que deseja ser modelo. E vamos ficar por aqui.
Não estava à espera de um texto linear do melhor que se fez no romantismo e no neo-realismo, menos ainda de uma coisa anti-teatro, à Ionesco e Arrabal, onde se insere todo o "absurdês" de Becket. Quando muito um texto com uns pós de teatro agit-prop(agitação e propaganda) postmoderno, revisitado, considerando o tema da peça.
 Contudo, infelizmente, o texto acaba por se tornar confuso, pois as pontas deixadas soltas - tal como numa telenovela, só que esta se estende por 100 episódios - acabam por não ter um aprofundamento desejado, sentindo eu que tudo foi tratado pela rama, roubando clarividência à linha condutora da intriga. Compreendo (ou julgo compreender) que Gustavo Pernas pretenda rejeitar a linearidade narrativa, as personagens excessivamente delineadas, a intriga arrumadinha, assumindo ele uma atitude de certa inovação e risco, demarcando-se das correntes dramáticas conhecidas. Mas o produto final é confuso, e aquilo que me parecia o registo base, isto é, a relação escravatura da moda com escravatura laboral, dissipa-se completamente.
Há ainda no texto uma perigosa ambiguidade, pois o operariado da Europa ocidental nada tem a ver com os escravos-operários do extremo oriente. Dos 100 euros que se pagam por umas sapatilhas Nike, recebe o operário no Viet-Nam, 20 cêntimos (Revista DECO, Agosto de 2008). O autor fala das realidades laborais, difíceis é um facto e causadores de incapacidades físicas, como se estivéssemos ainda na Arqui-Revolução Industrial, prova clara de que ele, não tenho dúvidas, desconhece o que são as fábricas, e delas tem uma ideia intelectual. Na realidade portuguesa há os sindicatos, há comissões de trabalhadores, há inspecções periódicas quer às condições laborais quer às condições de higiene e segurança. Há injustiças? Pois há. A desigualdade salarial entre homens e mulheres é inadmissível? Pois é.
Outra apontamento a propósito do texto. Os dois capatazes são de uma dedicação canina, alarve e primária, não faltando uma capataz(a) lésbica, apaixonada por uma operariazinha jeitosa e virginal.
Dizia Luandino Vieira aquando da apresentação do seu último livro na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, "Os guerrilheiros", que trinta anos depois, mais uma vez voltava às questões da guerra de libertação em Angola, isto por uma razão muito simples: é que só podia falar e escrever daquilo que conhecia e sabia. Pelos vistos o autor Gustavo Pernas não lhe seguiu o caminho nesta consideração carregada de tanto bom senso.
Termina a peça de uma forma patética, com os actores  a baterem palmas a uma fotografia  que representa uma menina operária, loura e ocidental (portanto, não oriunda de um dos países do Oriente), apertada entre dois enormes teares. Aqui está outra perigosa ambiguidade. A fotografia terá sido tirada nas primeiras décadas do século passado, documentando uma situação que aqui já não existe. Existem sim outras questões mais graves, e que o autor trata superficialmente, como são a deslocalização, as incapacidade físicas, a precaridade do posto de trabalho e o desemprego crescente. Num momento em que fecham fábricas e os operários se juntam à porta da fábrica a exigir que ela não encerre, não deixa de ser caricato ver as operárias na peça, quais anjos caídos em desgraça, a espreitar por uma janela, observando o mundo feliz cá de fora, e depois de punho erguido, entusiasmadas - aqui está o melhor do teatro agit-prop -  clamando uma série de palavras de ordem, que me fez recordar as manhãs que cantam e as alvoradas libertadoras, que noutro contexto e com outro tratamento teriam cabimento.
Percebo que  autor, um pouco à maneira de Brecht e ainda de Augusto Boal, com o seu Teatro do Oprimido, queira retomar um teatro comprometido, denunciador das explorações e alienações que vão minando uma parte a sociedade. Mas aqui há um perigoso maniqueismo do melhor da literatura neo-realista: todos os patrões são maus, e todos os operários, uns explorados e bons samaritanos.
Apoio a opção do autor neste seu teatro comprometido. Pessoalmente já não tenho pachorra para ver Becket, com o nosso Jacinto Lucas Pirtes incluido, pessoa que muito estimo. Mas não desta maneira como faz Gustavo Pernas, em que o discurso denunciador acaba por se perder no meio de tanta ponta solta. Há sequências vintecincoabrilescas, no pior sentido da palavra, de uma demagogia popularucha.
Neste mar conturbado de pontas que se cruzam e que nos deixam o entendimento de mãos a abanar, conseguiu o encenador Castro Guedes  fazer alguma coisa de jeito e por isso tenho que lhe tirar o chapéu. Foi ele que me manteve agarrado à cadeira, impedindo-me a deselegância e falta de respeito pelo trabalho dele, dos actores e de todos os outros profissionais, de sair porta fora. Consegue Castro Guedes um excelente aproveitamento do espaço cénico, separando-o em dois planos, colocando no plano superior (significativamente) os patrões, e no inferior, as cenas com o operariado. Há mudanças de cena muito bem conseguidas, e melhor ainda quando tem no centro as nove operárias-anjos caídos, em sequências de grande beleza, força e impacto. Recordo aquela  em que as operárias  vão enredando a capataz(a) com os fios que elas próprias tecem, e aquela outra com as tesouras. Há ali muitas e muitas horas de trabalho, de dedicação, melhor, de abnegação. Detestei, no entanto, a maneira lamurienta, chorosa, com que algumas operárias debitam o seu discurso. Não percebi porque nos separadores das cenas é introduzido Bach, um compositor palaciano, com uma música, embora excelsa, muito arrumadinha e sincronizada.
Tenho ainda uma palavra de admiração para o desenho de luz, aspecto que passa quase sempre despercebido ao público. Isso é bem visível logo no início da peça quando o peregrino (a mim parecia-me mais um filósofo da ágora ateniense, mas é o programa que o identifica como peregrino) com meio telão aberto faz algumas considerações, deixando antever um palco completamente vazio, o que não era verdade. Houve muitas outras propostas cénicas que não percebi, que do texto estamos conversados. É para os actores e actrizes amadores que vai o meu maior apreço. São gente amadora no sentido mais etimológico da palavra, isto é, que amam. Dada as carências financeiras do teatro, esta é uma opção interessante, que também vejo levar a cabo, por exemplo,no PanMixia, do CACE cultural do Porto. E aqueles actores e actrizes têm que amar muito, perdidamente, para levarem a cabo uma marcação cénica muitíssimo difícil, lidando com encenadores que são, inevitavelmente, pessoas muito exigentes e insatisfeitas.
Terão estas "Taras Mínimas" conseguido público para o teatro? Na noite em que fui, havia uma turma de uma escola, trazida, louvavelmente, por uma professora. Terão gostado? Terão percebido que o teatro deve ser um grande desinquietador e que ele é a nobre arte do fingimento? Terão ainda percebido que os dramazinhos dos Morangos não passam da mais dolorosa banalidade, porque tratados pela rama, com se os seus espectadores fossem lerdos do miolo?
Bom, mas isso são outros teatros, outras cenas.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Fui ao CONCERTO de GIGLI no Carlos Alberto

O que leva um  espectador de teatro a ver uma determinada peça, sabendo de antemão coisas como estas: trata-se de uma peça a três, em que a personagem feminina tem uma intervenção circunstancial, embora determinante e enriquecedora do multifacetismo de que todos somos feitos, fazendo desses texto um diálogo. O outro aspecto a temer, é que este Concerto de Gigli dura qualquer coisa como três horas. Mas a outra pergunta com me interroguei foi esta: porque razões (obscuras?) vi o espectáculo três vezes?
Bom, aqui não posso deixar de dizer que os grandes textos, tal como uma sinfonia do divino Ludwig, permitem abordagens e visitações sempre enriquecedoras, não se esgotam numa primeira leitura. Do João Cardoso e do João Pedro Vaz (vi nas Boas Raparigas uma encenação dele de uma peça do Bergman que adorei) conheço-lhes bem a estaleca não apenas como actores mas na escolha criteriosa de textos. Ficava-me então por conhecer este irlandês Tom Murphy - tenho vindo a saber aos poucos, e por aquilo que vou vendo no Porto, que a dramaturgia irlandesa é riquíssima, muito para lá do Samuel Becket.
Do que trata afinal este texto? Não pode ser coisa mais simples, quase sem intriga. Um homem irlandês (João Cardoso) - assim mesmo, que a personagem não foi crismada com qualquer nome - vai ser consultado por Mr King (João Pedro Vaz), uma espécie de psiquiatra e meio aldrabão, apenas com um objectivo: cantar como o italiano Gigli, relativamente célebre tenor dos anos trinta e quarenta, que chegou a actuar em Portugal. A fama deste Gigli só não foi mais longe porque na época, Caruso era amo e senhor, no seu registo vocal, do bel-canto.
Este Mr King domina uma técnica manhosa chamada de "dinamatologia", conseguindo com ela, qual mesinha milagrosa, eliminar as nódoas-negras psicológicas que nos atormentam com recurso ao nosso próprio dinamismo.
Linha romanesca mais simples, repito, não pode haver. Mas é a partir desta simplicidade que o dramaturgo nos vai enredando nos problemas que afectam as duas personagens. É que Mr King é um falhado, sem horizontes, muito bem traduzido na frase que ele diz e repete logo no início da peça: "Meu Deus, como vou poder sobreviver a mais um dia?". O que o homem irlandês pretende - indivíduo de posses, ligado à construção imobiliária  - ao querer cantar como o seu ídolo, não é mais do que uma cura para todos os problemas que o afligem.
Mas o que é desafiador neste texto é que ele mexe nos nossos medos mais escondidos, agita as nossas frustrações, não na maneira brutal e frontal como fazia Tenesse Williams, mas recorrendo a uma certa ironia triste que por várias vezes leva o espectador a soltar um riso rumorejado.
Para além da rigorosíssima marcação de dois excelentes actores - que me perdoe a Rosa Quiroga, mas o papel que lhe coube é abafado pelos outros dois -  há aqui algumas coisas que eu queria realçar. A primeira tem a ver  como as duas personagens se opõem e se complementam, e mais do que isso, como acontece a partir de determinada altura vão recorrendo a uma alternância de papeis e posturas psicológicas, pois aquilo que é dito por um numa cena anterior, é agora repetido pelo outro. Depois, duas situações pontuais. A primeira é o choro convulsivo, sonoro, prolongado do Homem Irlandês, um choro tremendo que se arrasta por um bom par de minutos num berreiro angustiante, que leva o espectador a desejar que aquilo termine o mais depressa possível. De facto, é este choro, qual libertação catártica, psicanalítica, que vai sarar  o Homem Irlandês, permitindo que ele se cure e renove.  A cena final, com Mr King, desejando ele ser Gigli, emborcando alcoól, a torto e a direito, é de uma força desconsertante, com mr King a cantar em desespero, patético, querendo ele ser Gigli, e poder curar os problemas que o afectam.
Teatro da palavra e do verbo, audaz e imaginativo, também poético, deixa-nos no nosso íntimo um desejo insidioso. E se eu conseguisse cantar como Gigli? Agora que por todo o lado vão aparecendo concursos televisos em que se buscam novos cantores imitantes dos ídolos da música nacional e internacional, este Concerto de Gigli faz ainda mais sentido. Na verdade, quando se pretende imitar  e ser como a Shakira ou o Sting, não está no fundo esta gente nova, a querer superar as suas limitações?
Bom, mas isto são outras histórias cenas
Outubro 2009
 

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Fui a Vila Flor ver o Jardim Zoológico de Cristal

Fui a Guimarães ver mais um intrigante e desafiador texto de Tenesse Williams, exactamente este Jardim Zoológico de Cristal (no original Glass Menagerie). A memória mais remota que tenho de Tenesse Williams, remonta aos anos sessenta quando era aluno universitário em Lisboa e tive que ler no original a celebérrima e muito conhecida Gata em Telhado de Zinco Quente, para uma cadeira do quarto ano que se chamava História da Cultura e das Instituições Americanas(correctamente deveria chamar-se Norte-Americanas, mas enfim...). Lembro-me que na altura  o docente de quem não me lembro o nome, ter chamado a atenção para o facto de Tenesse Williams ir sacar ao nosso insconsciente individual aquilo que por lá anda recalcado, por certo, isto garantia ele, influenciado por Freud. Acho que dizia o mesmo do Arthur Miller com o seu Morte de Um Caixeiro Viajante, mas não posso garantir.
Numa época salazarenta, em que praticamente não havia teatro - vinha de uma terra, Leiria, onde aparecia de vez em quando a celebérrima companhia Rafaael de Oliveira.com umas peças do Ramada Curta, que outras a censura não autorizava - a leitura de A Gata deixou-me assarapantado e confuso, indo direitinha às apetências e desejos de questionamento de um jovem com pouco mais de vinte anos. 
Neste Jardim Zoológico de Cristal a primeira das suas sessenta e tal peças a dar-lhe notoriedade na cena americana, (parece que Tenesse Williams foi mais adaptado ao cinema que Shakespear) vem ao de cima aquilo que é comum na obra de Tenesse Williams: diálogos simples, envolventes, frontais e brutais, que são ao fim e ao cabo a expressão  das tensões sexuais encobertas e violência reprimida.
A mãe - Amanda- a personagem principal que faz mover a intriga na peça, é mais uma entre muitas da extraordinária galeria do dramaturgo, mesquinha, autoritária e baralhada. Quem podia levantar esta personagem se não a Maria do Céu Ribeiro, possivelmemente (as outras que me perdoem) a melhor actriz que anda por este Porto? Quem não a viu em Psicose, no estúdio Zero, daquela paranoica chamada Sarah Krane, devia ter visto.
A peça escrita a seguir á crise económica dos anos vinte, tem uma dolorosa actualidade. Falta-nos dinheiro e tudo queremos comprar. Falta-nos um salvador e esperamos que um D. Sebastião nos venha salvar: com o euromilhões, ou com um casamento, como é a solução que procura a mãe para a filha manca, Laura. O salvador vem, sim na pessoa do charmoso Jim (curiosamente interpretado por um actor que se chama Romeu Costa). Veio e não devia ter vindo? A solução cénica engendrada pelo Nuno Cardoso é extremamamente criativa, para além das marcações rigorosas, determinados momentos de pausa, suspnsivos e muito ricos, e ainda o desenho de luz. E depois há o rigor do guarda-roupa.Lembro-me que o meu pai vestia um pouco como o Jim, embora com menos chame, claro.
Bom, a peça vai andar por aí e se alguém me ler e gostar de teatro ele é um "must", como agora se diz.
O problema é o bom povo português largar o sofá, derreado pela ditadura da telecracia: televisão, telemóvel, internet. Bom mas isso são outras histórias, outras cenas.
Outubro de 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

O OLHO DE ALÁ debaixo da ponte do Freixo

Fui ver O OLHO de ALÁ
Sabia ao que ia quando fui ver um trabalho cénico do Carretas. E mais uma vez ele não me desiludiu, embora aqui e ali haja pequenos pecadilhos que podiam ser facilmente evitados. Trata-se de uma linha narrativa, muito simples: em finais da Idade Média, um frade do norte da Europa desloca-se do seu mosteiro até ao sul da Hespanha, possivelmente Córdova, que na altura possuía uma extraordinária  e avançadíssima civilização, para aí recolher plantas de toda a espécie de arbustos necessárias para as iluminuras a que se entregavam os copistas do convento. Nessa Córdova, o bom do frade - carregado de testosterona - descobre a sensualidade e o amor carnal ao apaixonar-se por uma belíssima moura - a actriz Linda Rodrigues foi esconhidinha a dedo. No regresso traz com ele um objecto preciosíssimo: uma lente de aumentar e que vem desencadear no superior da ordem monástica os piores temores, levando-o a destruir aquele objecto de vidro, perigosíssimo porque diabólico, após um discurso ultrareaccionário e intolerante, que se ouviu em Portugal e em Espanha até há pouco mais de 30 anos.
A narrativa cénica pretende confrontar-nos com uma Europa cristã, medieval e obscura em oposição com uma cicilização árabe sensual, luminosa e culturalmente muito avançada.
Há alguns pormenores cénicos de uma extraordinária criatividade e no Porto, neste aspecto, não são muitos os encenadores que podem rivalizar com o Carretas. O aviso no início do espectáculo, para não utilização de máquinas fotográficas  é feito insperadamente em latim, ao vivo, por um frade. Só isto já valia por todo o espectáculo. Os banhos públicos (com utilização do fosso de reparação das viaturas da EDP- não esquecamos que o grupo trabalha da antiga estação de electricidade do Freixo) é outra cena exemplarmente conseguida, e nada gratuita, com os homens exibindo bem visíveis os seus pirilaus (mirradinhos, porque estava um frio de rachar e na sala não há aquecimento central),  já que nos árabes a higiene era algo de muito precioso - ao contrário dos cristãos que nessas épocas tomavam banho pela Páscoa e pelo Natal.
Finalmente, a utilização de uns boiões de vidro, cheios de água, para exibir as potencialidades da lente de aumentar (o tal  olho de Alá) é de uma grande criatividade.
Notável o lamento final na boca da actriz Helena Faria, pois nele está a pedra de toque de toda a peça. Profundamente cristã, a personagem abeirando-se rapidamente de uma morte precoce, em grande sofrimento físico e moral, dirige-se a Deus com uma terrível interrogação: Deus, se és o Sol, porque não iluminas a minha alma?"
É um espectáculo relativamente pobre de meios, ao contrário de outros a que já assisti  no S. João, no Maria II e até na Cornucópia. E a falta daquilo com que se compram os melões leva a que os encenadores - e o Carretas, nomeadamente - recorram à criatividade, levando ao mais alto nível aquilo que nós somos: homo ludens. É que o teatro é grande e nobre arte do fingimento e para isso não são preciso grande meios. Lembro-me de um poema do Vinicius em que ele declara que com um lápis faz um castelo, um cão, uma praia, e para voar um gavião. É claro que no meu país não quero ver um teatro pelintra, parente pobre, filho enjeitado da cultura. Mas isto são outras conversas, outras cenas...
 
Outubro de 2009
 
 
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