sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Fui ver as Taras Mínimas ao Sá de Miranda

O programa que é distribuído insere, entre outra informação, o seguinte, da lavra do autor Gustavo Pernas: "Debaixo da face estética da moda escondem-se os corpos vencidos e as mãos de milhares de mulheres que tecem a teia de aranha duma nova escravidão." Óptimo! Não podia estar mais de acordo e achei interessante que o autor tivesse pegado nesta questão associando-a, pela fotografia da jovem escanzelada e reduzida a pele e osso que aparece no programa, à ditadura da magreza.
A proposta é simples, e a partir daqui, aborde o autor da maneira que abordar, não terá que fazer mais do que ir enriquecendo esta linha de narrativa e de conflito, quase sempre triangular, ao longo do desenrolar da intriga - quando ela existe, claro. Tanto quanto sei, isto faz parte dos livros e todos aqueles que eram uns perfeitaços nestas coisas da dramaturgia foi assim que procederam: Ibsen, Tchekov, Brecht, etc, etc, até ao nosso Vieira Mendes. No entanto, Gustavo Pernas, talvez incapaz de refrear e gerir dramaticamente a sua criatividade, atira para o mesmo saco uma série de questões que deveriam ser tratadas em separado, e que só por si, mereciam mais umas quantas peças. A primeira é a nova forma de exploração a que recorrem as multinacionais. A outra seria os problemas que afectam uma determinada família, donos de uma multinacional, com uma filha modelo-caprichosa-insaciável, e tanto quanto percebi (se calhar mal) assassina do marido. Mais outra seria a forma como é feita o recrutamento do operariado, depois as suas condições degradantes de trabalho, ainda uma operária que tem uma filha anorética, e que deseja ser modelo. E vamos ficar por aqui.
Não estava à espera de um texto linear do melhor que se fez no romantismo e no neo-realismo, menos ainda de uma coisa anti-teatro, à Ionesco e Arrabal, onde se insere todo o "absurdês" de Becket. Quando muito um texto com uns pós de teatro agit-prop(agitação e propaganda) postmoderno, revisitado, considerando o tema da peça.
 Contudo, infelizmente, o texto acaba por se tornar confuso, pois as pontas deixadas soltas - tal como numa telenovela, só que esta se estende por 100 episódios - acabam por não ter um aprofundamento desejado, sentindo eu que tudo foi tratado pela rama, roubando clarividência à linha condutora da intriga. Compreendo (ou julgo compreender) que Gustavo Pernas pretenda rejeitar a linearidade narrativa, as personagens excessivamente delineadas, a intriga arrumadinha, assumindo ele uma atitude de certa inovação e risco, demarcando-se das correntes dramáticas conhecidas. Mas o produto final é confuso, e aquilo que me parecia o registo base, isto é, a relação escravatura da moda com escravatura laboral, dissipa-se completamente.
Há ainda no texto uma perigosa ambiguidade, pois o operariado da Europa ocidental nada tem a ver com os escravos-operários do extremo oriente. Dos 100 euros que se pagam por umas sapatilhas Nike, recebe o operário no Viet-Nam, 20 cêntimos (Revista DECO, Agosto de 2008). O autor fala das realidades laborais, difíceis é um facto e causadores de incapacidades físicas, como se estivéssemos ainda na Arqui-Revolução Industrial, prova clara de que ele, não tenho dúvidas, desconhece o que são as fábricas, e delas tem uma ideia intelectual. Na realidade portuguesa há os sindicatos, há comissões de trabalhadores, há inspecções periódicas quer às condições laborais quer às condições de higiene e segurança. Há injustiças? Pois há. A desigualdade salarial entre homens e mulheres é inadmissível? Pois é.
Outra apontamento a propósito do texto. Os dois capatazes são de uma dedicação canina, alarve e primária, não faltando uma capataz(a) lésbica, apaixonada por uma operariazinha jeitosa e virginal.
Dizia Luandino Vieira aquando da apresentação do seu último livro na Biblioteca Municipal de Viana do Castelo, "Os guerrilheiros", que trinta anos depois, mais uma vez voltava às questões da guerra de libertação em Angola, isto por uma razão muito simples: é que só podia falar e escrever daquilo que conhecia e sabia. Pelos vistos o autor Gustavo Pernas não lhe seguiu o caminho nesta consideração carregada de tanto bom senso.
Termina a peça de uma forma patética, com os actores  a baterem palmas a uma fotografia  que representa uma menina operária, loura e ocidental (portanto, não oriunda de um dos países do Oriente), apertada entre dois enormes teares. Aqui está outra perigosa ambiguidade. A fotografia terá sido tirada nas primeiras décadas do século passado, documentando uma situação que aqui já não existe. Existem sim outras questões mais graves, e que o autor trata superficialmente, como são a deslocalização, as incapacidade físicas, a precaridade do posto de trabalho e o desemprego crescente. Num momento em que fecham fábricas e os operários se juntam à porta da fábrica a exigir que ela não encerre, não deixa de ser caricato ver as operárias na peça, quais anjos caídos em desgraça, a espreitar por uma janela, observando o mundo feliz cá de fora, e depois de punho erguido, entusiasmadas - aqui está o melhor do teatro agit-prop -  clamando uma série de palavras de ordem, que me fez recordar as manhãs que cantam e as alvoradas libertadoras, que noutro contexto e com outro tratamento teriam cabimento.
Percebo que  autor, um pouco à maneira de Brecht e ainda de Augusto Boal, com o seu Teatro do Oprimido, queira retomar um teatro comprometido, denunciador das explorações e alienações que vão minando uma parte a sociedade. Mas aqui há um perigoso maniqueismo do melhor da literatura neo-realista: todos os patrões são maus, e todos os operários, uns explorados e bons samaritanos.
Apoio a opção do autor neste seu teatro comprometido. Pessoalmente já não tenho pachorra para ver Becket, com o nosso Jacinto Lucas Pirtes incluido, pessoa que muito estimo. Mas não desta maneira como faz Gustavo Pernas, em que o discurso denunciador acaba por se perder no meio de tanta ponta solta. Há sequências vintecincoabrilescas, no pior sentido da palavra, de uma demagogia popularucha.
Neste mar conturbado de pontas que se cruzam e que nos deixam o entendimento de mãos a abanar, conseguiu o encenador Castro Guedes  fazer alguma coisa de jeito e por isso tenho que lhe tirar o chapéu. Foi ele que me manteve agarrado à cadeira, impedindo-me a deselegância e falta de respeito pelo trabalho dele, dos actores e de todos os outros profissionais, de sair porta fora. Consegue Castro Guedes um excelente aproveitamento do espaço cénico, separando-o em dois planos, colocando no plano superior (significativamente) os patrões, e no inferior, as cenas com o operariado. Há mudanças de cena muito bem conseguidas, e melhor ainda quando tem no centro as nove operárias-anjos caídos, em sequências de grande beleza, força e impacto. Recordo aquela  em que as operárias  vão enredando a capataz(a) com os fios que elas próprias tecem, e aquela outra com as tesouras. Há ali muitas e muitas horas de trabalho, de dedicação, melhor, de abnegação. Detestei, no entanto, a maneira lamurienta, chorosa, com que algumas operárias debitam o seu discurso. Não percebi porque nos separadores das cenas é introduzido Bach, um compositor palaciano, com uma música, embora excelsa, muito arrumadinha e sincronizada.
Tenho ainda uma palavra de admiração para o desenho de luz, aspecto que passa quase sempre despercebido ao público. Isso é bem visível logo no início da peça quando o peregrino (a mim parecia-me mais um filósofo da ágora ateniense, mas é o programa que o identifica como peregrino) com meio telão aberto faz algumas considerações, deixando antever um palco completamente vazio, o que não era verdade. Houve muitas outras propostas cénicas que não percebi, que do texto estamos conversados. É para os actores e actrizes amadores que vai o meu maior apreço. São gente amadora no sentido mais etimológico da palavra, isto é, que amam. Dada as carências financeiras do teatro, esta é uma opção interessante, que também vejo levar a cabo, por exemplo,no PanMixia, do CACE cultural do Porto. E aqueles actores e actrizes têm que amar muito, perdidamente, para levarem a cabo uma marcação cénica muitíssimo difícil, lidando com encenadores que são, inevitavelmente, pessoas muito exigentes e insatisfeitas.
Terão estas "Taras Mínimas" conseguido público para o teatro? Na noite em que fui, havia uma turma de uma escola, trazida, louvavelmente, por uma professora. Terão gostado? Terão percebido que o teatro deve ser um grande desinquietador e que ele é a nobre arte do fingimento? Terão ainda percebido que os dramazinhos dos Morangos não passam da mais dolorosa banalidade, porque tratados pela rama, com se os seus espectadores fossem lerdos do miolo?
Bom, mas isso são outros teatros, outras cenas.

1 comentário:

  1. Olá Orlando. Só hoje dei por esta tua reflexão relativa ao espectáculo. Obrigada. Também te posso dizer que amei o que fiz e cresci. Cresci muito, num ambiente de muita inquietação e partilha colaborativa. Construi muito ao redor destas temáticas que referes e que enformam texto e encenação. O Castro Guedes, que há muito conhecia mostrou-se um encenador muito atento e que nos levou a reflexões, debates, visionamento de imagem para aprofundarmos conhecimento num clima muito rico em afectos partilha e construção de saberes neste mundo que nos é comum : o teatro e nomeadamente nas temáticas que emvolvem este texto que para mim está muito bem conseguido. Espero estar contigo um dia destes para poder voltar ao palco desta vez com os teus singulares textos e contigo na encenação colocando novamente no mar o navio que atracou na beira lima. Faço questão de dizer-te que por muita pena minha não fui à apresentação do teu livro mas quero um. Não estive lá por completa impossibilidade.Aquele abraço.

    ResponderEliminar