terça-feira, 10 de novembro de 2009

Fui ao CONCERTO de GIGLI no Carlos Alberto

O que leva um  espectador de teatro a ver uma determinada peça, sabendo de antemão coisas como estas: trata-se de uma peça a três, em que a personagem feminina tem uma intervenção circunstancial, embora determinante e enriquecedora do multifacetismo de que todos somos feitos, fazendo desses texto um diálogo. O outro aspecto a temer, é que este Concerto de Gigli dura qualquer coisa como três horas. Mas a outra pergunta com me interroguei foi esta: porque razões (obscuras?) vi o espectáculo três vezes?
Bom, aqui não posso deixar de dizer que os grandes textos, tal como uma sinfonia do divino Ludwig, permitem abordagens e visitações sempre enriquecedoras, não se esgotam numa primeira leitura. Do João Cardoso e do João Pedro Vaz (vi nas Boas Raparigas uma encenação dele de uma peça do Bergman que adorei) conheço-lhes bem a estaleca não apenas como actores mas na escolha criteriosa de textos. Ficava-me então por conhecer este irlandês Tom Murphy - tenho vindo a saber aos poucos, e por aquilo que vou vendo no Porto, que a dramaturgia irlandesa é riquíssima, muito para lá do Samuel Becket.
Do que trata afinal este texto? Não pode ser coisa mais simples, quase sem intriga. Um homem irlandês (João Cardoso) - assim mesmo, que a personagem não foi crismada com qualquer nome - vai ser consultado por Mr King (João Pedro Vaz), uma espécie de psiquiatra e meio aldrabão, apenas com um objectivo: cantar como o italiano Gigli, relativamente célebre tenor dos anos trinta e quarenta, que chegou a actuar em Portugal. A fama deste Gigli só não foi mais longe porque na época, Caruso era amo e senhor, no seu registo vocal, do bel-canto.
Este Mr King domina uma técnica manhosa chamada de "dinamatologia", conseguindo com ela, qual mesinha milagrosa, eliminar as nódoas-negras psicológicas que nos atormentam com recurso ao nosso próprio dinamismo.
Linha romanesca mais simples, repito, não pode haver. Mas é a partir desta simplicidade que o dramaturgo nos vai enredando nos problemas que afectam as duas personagens. É que Mr King é um falhado, sem horizontes, muito bem traduzido na frase que ele diz e repete logo no início da peça: "Meu Deus, como vou poder sobreviver a mais um dia?". O que o homem irlandês pretende - indivíduo de posses, ligado à construção imobiliária  - ao querer cantar como o seu ídolo, não é mais do que uma cura para todos os problemas que o afligem.
Mas o que é desafiador neste texto é que ele mexe nos nossos medos mais escondidos, agita as nossas frustrações, não na maneira brutal e frontal como fazia Tenesse Williams, mas recorrendo a uma certa ironia triste que por várias vezes leva o espectador a soltar um riso rumorejado.
Para além da rigorosíssima marcação de dois excelentes actores - que me perdoe a Rosa Quiroga, mas o papel que lhe coube é abafado pelos outros dois -  há aqui algumas coisas que eu queria realçar. A primeira tem a ver  como as duas personagens se opõem e se complementam, e mais do que isso, como acontece a partir de determinada altura vão recorrendo a uma alternância de papeis e posturas psicológicas, pois aquilo que é dito por um numa cena anterior, é agora repetido pelo outro. Depois, duas situações pontuais. A primeira é o choro convulsivo, sonoro, prolongado do Homem Irlandês, um choro tremendo que se arrasta por um bom par de minutos num berreiro angustiante, que leva o espectador a desejar que aquilo termine o mais depressa possível. De facto, é este choro, qual libertação catártica, psicanalítica, que vai sarar  o Homem Irlandês, permitindo que ele se cure e renove.  A cena final, com Mr King, desejando ele ser Gigli, emborcando alcoól, a torto e a direito, é de uma força desconsertante, com mr King a cantar em desespero, patético, querendo ele ser Gigli, e poder curar os problemas que o afectam.
Teatro da palavra e do verbo, audaz e imaginativo, também poético, deixa-nos no nosso íntimo um desejo insidioso. E se eu conseguisse cantar como Gigli? Agora que por todo o lado vão aparecendo concursos televisos em que se buscam novos cantores imitantes dos ídolos da música nacional e internacional, este Concerto de Gigli faz ainda mais sentido. Na verdade, quando se pretende imitar  e ser como a Shakira ou o Sting, não está no fundo esta gente nova, a querer superar as suas limitações?
Bom, mas isto são outras histórias cenas
Outubro 2009
 

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