sábado, 7 de novembro de 2009

O OLHO DE ALÁ debaixo da ponte do Freixo

Fui ver O OLHO de ALÁ
Sabia ao que ia quando fui ver um trabalho cénico do Carretas. E mais uma vez ele não me desiludiu, embora aqui e ali haja pequenos pecadilhos que podiam ser facilmente evitados. Trata-se de uma linha narrativa, muito simples: em finais da Idade Média, um frade do norte da Europa desloca-se do seu mosteiro até ao sul da Hespanha, possivelmente Córdova, que na altura possuía uma extraordinária  e avançadíssima civilização, para aí recolher plantas de toda a espécie de arbustos necessárias para as iluminuras a que se entregavam os copistas do convento. Nessa Córdova, o bom do frade - carregado de testosterona - descobre a sensualidade e o amor carnal ao apaixonar-se por uma belíssima moura - a actriz Linda Rodrigues foi esconhidinha a dedo. No regresso traz com ele um objecto preciosíssimo: uma lente de aumentar e que vem desencadear no superior da ordem monástica os piores temores, levando-o a destruir aquele objecto de vidro, perigosíssimo porque diabólico, após um discurso ultrareaccionário e intolerante, que se ouviu em Portugal e em Espanha até há pouco mais de 30 anos.
A narrativa cénica pretende confrontar-nos com uma Europa cristã, medieval e obscura em oposição com uma cicilização árabe sensual, luminosa e culturalmente muito avançada.
Há alguns pormenores cénicos de uma extraordinária criatividade e no Porto, neste aspecto, não são muitos os encenadores que podem rivalizar com o Carretas. O aviso no início do espectáculo, para não utilização de máquinas fotográficas  é feito insperadamente em latim, ao vivo, por um frade. Só isto já valia por todo o espectáculo. Os banhos públicos (com utilização do fosso de reparação das viaturas da EDP- não esquecamos que o grupo trabalha da antiga estação de electricidade do Freixo) é outra cena exemplarmente conseguida, e nada gratuita, com os homens exibindo bem visíveis os seus pirilaus (mirradinhos, porque estava um frio de rachar e na sala não há aquecimento central),  já que nos árabes a higiene era algo de muito precioso - ao contrário dos cristãos que nessas épocas tomavam banho pela Páscoa e pelo Natal.
Finalmente, a utilização de uns boiões de vidro, cheios de água, para exibir as potencialidades da lente de aumentar (o tal  olho de Alá) é de uma grande criatividade.
Notável o lamento final na boca da actriz Helena Faria, pois nele está a pedra de toque de toda a peça. Profundamente cristã, a personagem abeirando-se rapidamente de uma morte precoce, em grande sofrimento físico e moral, dirige-se a Deus com uma terrível interrogação: Deus, se és o Sol, porque não iluminas a minha alma?"
É um espectáculo relativamente pobre de meios, ao contrário de outros a que já assisti  no S. João, no Maria II e até na Cornucópia. E a falta daquilo com que se compram os melões leva a que os encenadores - e o Carretas, nomeadamente - recorram à criatividade, levando ao mais alto nível aquilo que nós somos: homo ludens. É que o teatro é grande e nobre arte do fingimento e para isso não são preciso grande meios. Lembro-me de um poema do Vinicius em que ele declara que com um lápis faz um castelo, um cão, uma praia, e para voar um gavião. É claro que no meu país não quero ver um teatro pelintra, parente pobre, filho enjeitado da cultura. Mas isto são outras conversas, outras cenas...
 
Outubro de 2009
 
 
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